Pagar para respirar
Em Portugal já há quem pague, e muito, para respirar – todos os portugueses que dependem de garrafas de oxigénio para viver pagam o valor máximo do IVA (21%) por esse luxo – a mesmíssima taxa que impende sobre os produtos de perfumaria ou as garrafas de uísque. Muito mais do que se paga por uma garrafa de vinho português (IVA de 12%). Destas coisas não se fala porque, na pós-modernidade sem tabus, o sexo vende-se como festa contínua e a juventude como obrigação eterna, mas a doença é tratada como, mais do que uma vergonha, uma prova de inferioridade. A morte de cancro noticia-se, eufemisticamente, como «doença prolongada» - e com o advento da sida e da Alzheimer a boataria e a má-língua sobre as enfermidades dos famosos tem atingido níveis absolutamente infra-humanos. O tom compungido e íntimo que certos «amigos» põem no relato pormenorizado das supostas misérias físicas dos seus próximos faz perder o ar ao mais contido. Há dias, ouvi a uma dessas almas: «Vais encomendar-lhe o trabalho, a sério? Pois, fulano é excelente, mas tem andado muito debilitado, não sei se dará conta do recado... Dizem que é uma pneumonia, mas, enfim, sabe-se lá se não será outra coisa...» Cada vez mais frequentes são também os comentariozinhos marginais sobre os vícios: «Sim, sim, é óptima - tem é aquela tendenciazinha para os copos, e para os cigarritos... Não dura muito, coitada.» Sobre os que respiram através de garrafas de oxigénio impende, por conseguinte, a suspeita de que não viveram segundo os Mandamentos da Santa Madre Saúde - provavelmente praticaram o pecado do fumo e, se assim foi, agora deixá-los pagar.
Os próprios doentes interiorizam esta fortíssima censura social, e não protestam: o corte dos benefícios fiscais para as pessoas com deficiência passou praticamente em silêncio, neste país onde a legislação europeia sobre barreiras arquitectónicas não é cumprida. Para extorquir mais dinheiro às pessoas com deficiência, o Estado deveria, no mínimo, oferecer-lhes condições de vida dignas - e a base dessa dignidade é o acesso igualitário ao espaço público. Portugal continua a esconder os seus deficientes - sabendo perfeitamente que entre eles estão alguns dos mais valorosos portugueses, medalhados, empreendedores, capazes de ir muito mais longe do que a maioria dos cidadãos ditos «normais», e sabendo também que este tipo de pessoas (orgulhosas, dinâmicas, vitoriosas) nunca se queixam nem aceitam mostrar-se como vítimas, pelo que se torna fácil tirar-lhes regalias ou sobrecarregá-las de dificuldades. Nada disto é novo - Portugal sempre enxotou os seus melhores, para as naus, para a cadeia ou para o exílio. Já o padre António Vieira, há quase quatro séculos, alertava para esta cegueira nacional - mas no país democrático e europeu em que é suposto vivermos ela torna-se afrontosa, e tão desesperada que chega a sacudir das cinzas o fantasma do tal ditador que nos convenceu a mantermo-nos pobrezinhos, lamurientos e resignados.
(...)
Enquanto o Governo nos encandeia com Allgarves de futuro fausto e vai aumentando as contas de doentes e violentados, é na sociedade civil que encontramos alento para continuar a respirar em Portugal.
in Expresso
JFS
2 comentários:
Esta crónica é de terça-feira, 3 de Abril de 2007 e chama-se "Pagar para respirar". Pode ser lida aqui:
http://expresso.clix.pt/gen.pl?p=stories&op=view&fokey=ex.stories/68796
Esqueci-me de pôr o título. Ainda estou muito verde nestas coisas.
Assim até parecia que o título da mensagem era o da Inês Pedrosa.
Obrigado pelo comentário. Vou acrescentar.
Enviar um comentário